
A história repete-se. À semelhança da doença celíaca e da fibromialgia quando surgiram, a sensibilidade ao glúten (SGNC) suscita a chacota de uma parte dos profissionais de saúde, intimamente convencidos de que se trata de uma histeria colectiva. Para eles, o facto de centenas de milhares de pessoas se privarem de glúten deve-se à moda e nada mais. E se “estes doentes imaginários” parecem aliviados depois de terem reduzido o seu consumo de glúten, isso resulta forçosamente de um efeito placebo.
Conhece este discurso? Já o experienciou? Fique a saber que ele não durará muito mais tempo. Um grupo de investigadores avançou com uma explicação plausível para o fenómeno e o mínimo que se pode dizer é que não tem nada de fictício
1. Segure-se, os mecanismos em jogo são por vezes complexos.
A sensibilidade ao glúten, (muito) em breve reconhecida pela comunidade científica?
Tal como acontece com a doença celíaca, as pessoas que se dizem “sensíveis ao glúten” queixam-se de sintomas após a ingestão de alimentos que contêm glúten. Trata-se de uma
combinação dos sintomas da síndrome de intestino irritável, incluindo dores abdominais, inchaços, perturbações intestinais (diarreia ou obstipação) e manifestações sistémicas como dores de cabeça, fadiga ou dores musculares.
Mas, contrariamente à doença celíaca, não se verifica degradação da parede intestinal, nem anticorpos dirigidos contra as moléculas de glúten. Deve então concluir-se que a doença não existe? Este é um debate apaixonante no seio da comunidade científica. E enquanto alguns investigadores preferem verificar se as vantagens de uma cura sem glúten não estão associadas a um efeito placebo, outros tentam descobrir os mecanismos potenciais.
Uma equipa de cientistas acaba justamente de formular
uma explicação do fenómeno que vai dar que falar
1. Segundo eles, a sensibilidade ao glúten não celíaca que afecta mais de 15% da população resulta da combinação de dois mecanismos.
1) Um desequilíbrio do microbiota intestinal
Nos últimos anos apercebemo-nos com estupefacção que o microbiota intestinal – ou seja, o conjunto das bactérias que vivem em harmonia com o nosso organismo – desempenha um papel muito mais importante na nossa saúde do que se pensava.
No intestino, por exemplo, apercebemo-nos que existem bactérias que produzem ácidos gordos de cadeia curta (AGCC), nomeadamente butirato – um nutriente que actua no crescimento e na renovação das células da mucosa cólica. Sem este precioso nutriente, as células do cólon definham e deixam de produzir uma quantidade suficiente de muco, a camada protectora que constitui uma barreira física contra os microrganismos e as substâncias nocivas
2.
É o que acontece verosimilmente às pessoas “sensíveis ao glúten”. Parece que no caso dessas pessoas, as bactérias produtoras de butirato (que pertence geralmente ao phylum Firmicutes
3) estão em dificuldades e não conseguem manter os níveis de butirato adequados. Quer por serem em número insuficiente, quer devido a uma falha dos seus aliados, as bactérias do género Bifidobacteria. Estas fornecem-lhes acetato e lactato, que as primeiras convertem depois em butirato
4. Se estas bifidobactérias se tornam raras, as produtoras de butirato irão também tornar-se raras pois a harmonia é precária.
A penúria de butirato e de muco daí resultante propicia o contacto entre as células intestinais e os antigenes microbianos. E, acima de tudo, desregula um dos mecanismos fundamentais da barreira intestinal: a
translocação bacteriana5-6. Trata-se da passagem de bactérias de origem digestiva através da barreira da mucosa intestinal para os gânglios mesentéricos, o sangue e os órgãos distantes.
Numa situação normal, esta passagem é impossibilitada por vários mecanismos, como a fosfatase alcalina intestinal (FAI), uma enzima que impede a adesão das bactérias patogénicas às células intestinais
7. Mas o butirato é precisamente um inductor da expressão da FAI8: quando a sua quantidadea diminui, leva a actividade da FAI consigo na queda e desencadeia a permeabilidade da barreira intestinal.
2) Uma alimentação rica em glúten e em ATIs
Há já algum tempo que os investigadores suspeitam do envolvimento de outras proteínas além do glúten (mas presentes nos mesmos alimentos) na sensibilidade ao glúten não celíaca; os inibidores da amilase-tripsina (ATIs)
9-11.
Trata-se de compostos proteicos que protegem as plantas dos parasitas e dos agentes nocivos inibindo as enzimas digestivas e que, por conseguinte, resistem também à degradação proteolítica do ser humano. Por outras palavras, tal como a gliadina e a glutenina (que formam o glúten), estes compostos têm uma digestibilidade muito fraca e mantêm-se praticamente intactos à saída do intestino.
E o verdadeiro problema é que estes compostos assumem um lugar cada vez mais relevante na nossa alimentação; ao seleccionar variedades de cereais cada vez mais resistentes aos agentes nocivos, o ser humano aumentou artificialmente o seu teor em ATIs
12. Quando comemos alimentos ricos em glúten como o pão ou as massas, ingerimos também ATIs.
Numa situação normal, o afluxo destas substâncias bastante pouco usuais para o ser humano não apresenta perigo para as células intestinais, protegidas pelo muco e por mecanismos desintoxicantes complexos. Mas em caso de desequilíbrio do microbiota, estes escudos esbatem-se e permitem que os ATIs se aproximem da mucosa com toda a impunidade
13. Aí, suspeita-se fortemente que se liguem a receptores
14-15 situados nas membranas dos enterócidos, os receptores TLR4 normalmente encarregados de bloquear moléculas tóxicas ou pertencentes a bactérias patogénicas. É esta fixação que provocaria uma inflamação intestinal, com a libertação de citocinas (IL-1β e TNFα), mas também uma subida da permeabilidade intestinal
16.
E não é tudo, pois uma vez do outro lado, além da barreira intestinal, têm tendência para se ligar aos mesmos receptores presentes nas outras células
17 e para amplificar as respostas inflamatórias já iniciadas noutro local do organismo. Isto explicaria os sintomas extra-intestinais (como a fadiga, as dores ou as perturbações dos estados de humor) e a rapidez com que se seguem à ingestão de alimentos ricos em glúten e em ATIs.
Se nada for feito, instala-se um círculo vicioso pois a inflamação crónica contribui para tornar ineficaz a fosfatase alcalina intestinal (FAI), o que propicia a multiplicação das bactérias patogénicas no intestino.
A boa notícia é que se esta hipótese avançada pelos investigadores estiver certa, a sensibilidade ao glúten não celíaca (que poderíamos aliás chamar “sensibilidade ao glúten e aos ATIs induzida por disbiose”) cura-se. Não teria causas genéticas, contrariamente à doença celíaca.
Para se ver livre dela, deve-se dar prioridade a
um retorno ao equilíbrio do microbiota intestinal. Eis os conselhos decorrentes das conclusões dos investigadores e que permitiriam curar a “sensibilidade ao glúten”:
- Restabelecer os níveis adequados de butirato, de forma directa ou indirecta tomando um suplemento com concentrados ricos em bifidobactérias que propiciam a sua produção.
- Aumentar o consumo de fibras alimentares que são indispensáveis ao desenvolvimento das bactérias produtoras de butirato (ou escolher suplementos naturais concentrados em fibras).
- Evitar os alimentos ricos em glúten e em ATIs, enquanto se dá tempo para recuperar um melhor equilíbrio da flora intestinal, ou propiciar a sua digestão tomando um suplemento com enzimas capazes de degradar as proteínas do trigo (como as incluídas em Glutalytic®).
- Evitar os produtos transformados “sem glúten” que – segundo um estudo publicado no Journal of Human Nutrition and Dietetics – têm mais gordura, mais açúcares, mais sal e são menos ricos em fibras do que os seus equivalentes tradicionais!
- Romper com as dietas ricas em gorduras (saturadas e trans) e em proteínas animais que aumentam os sais biliares, propiciam o desenvolvimento das bactérias patogénicas e acentuam a translocação intestinal18-19.
Referências
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